O último Imperador
Reconhecendo-me desde sempre como um republicano dos quatro costados, assumo-o não só por convicção mas também porque tento honrar o legado político do ramo familiar paterno, precisamente um avô e um tio cujo republicanismo e ideologia progressista lhes custaram as mais ignominiosas punições, do cárcere ao desterro.
Nessa circunstância poderei ter-me exposto, na anterior crónica celebrativa do Dia da Natureza, a críticas de tendenciosidade, pois os autores das atrocidades descritas provinham indisfarçavelmente das facções extremistas do poder monárquico deposto. No entanto, o fanatismo, esse veneno que alastra indominável, que vai escurecendo a racionalidade até petrificar-se na cegueira opaca da barbárie, não é exclusivo de um regime político em particular.
Condoído evocarei um cruento episódio protagonizado por não menos fanáticos republicanos brasileiros, 25 anos antes da sanha monárquica em Portugal contra as árvores plantadas por milhares de crianças. Manter-nos-emos no reino vegetal. A instauração da República no Brasil foi funesta para uma bela árvore cujo nome científico actual (já teve vários) não é fácil de memorizar: Chrysophyllum imperiale. A esta árvore de grande porte, nativa da região da Mata Atlântica, chamavam os indígenas de língua tupi “Guapeba”. Na época colonial, os portugueses alteraram-lhe o nome para “Marmeleiro-do-mato”, sugestionados pela parecença dos frutos com os marmelos lusos. Há uma fase do ano em que a árvore exibe uma folhagem deslumbrante, como poderá verificar-se na foto aqui reproduzida.
Porventura terá sido esta beleza, a par dos frutos saborosos, que originou o fascínio do imperador Pedro I (Pedro IV em Portugal) pela árvore que ao tempo existia em abundância numa vastíssima região costeira baixa, do Rio de Janeiro ao sudeste de Minas Gerais. Pedro II, filho do primeiro imperador, herdou desde criança a sedução por esta árvore e seria mais tarde o mecenas do célebre botânico Martius que, por seu turno, elegera a formosa “Guapeba” como a espécie botânica de sua predilecção (a anterior designação científica – Martiusella imperialis – constitui uma homenagem a Martius e aos dois imperadores brasileiros).
Bem se entende o motivo porque no decurso da segunda metade do século XIX a outrora “Guapeba” passou a ser nomeada por Árvore do Imperador. Pedro II estatuiu-a “oferta imperial”, enviando espécimes para vários jardins botânicos do mundo, entre os quais o de Sydney, na Austrália, onde continua a ser conhecida por Royal Tree.
No final de 1889, com o advento da República no Brasil e o “banimento” de Pedro II, a Árvore do Imperador é igualmente “banida”. Ao contrário da realeza não se lhe concede o exílio. Começa por desaparecer iniquamente dos jardins botânicos do País, parques e vias públicas. Ocorre, num processo mais lento, situação idêntica em toda a extensão da Mata Atlântica, onde já começara a declinar devido à excelência da madeira desta espécie para a construção naval. Mas alguém terá ordenado que a prioridade de abate deveria concentrar-se na Árvore do Imperador.
E foi assim que muitos navios nasceram pelo preço medonho de uma espécie vegetal caída em desgraça entre a espécie humana.
Na actualidade, as instituições ecológicas internacionais atribuem ao Chrysophyllum imperiale um dos mais elevados níveis de “ameaça de extinção”.
Há cinco anos foi criado um grupo de pessoas de vários países (Brasil, Austrália e Portugal) que lutam apaixonadamente pela salvação desta árvore indissociável da história do Brasil e também, de algum modo, de Portugal. Esse grupo – precisamente o “Grupo do Imperador”, que honrosamente integro desde o primeiro dia – trata a árvore pelo nobilíssimo e justo nome de Imperador. O objectivo é reintroduzir o Imperador na sua pátria de origem, a Mata Atlântica.
Fora do Brasil estão apenas referenciados sete exemplares. Exceptuando a Argentina, com três espécimes em Buenos Aires, há um “último Imperador” em quatro países: Portugal (Lisboa), Austrália (Sydney), Bélgica (Bruxelas) e Itália (Florença).
O Imperador português encontra-se no Jardim Botânico do Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa e terá sido oferecido pelo imperador Pedro II ao seu grande amigo Conde de Ficalho, figura relevante da cultura portuguesa do século XIX e um dos principais impulsionadores da criação do Jardim.
Nesta odisseia intercontinental, um magno e recente acontecimento foi a descoberta em Agosto de 2008 de um Imperador que sobreviveu ao extermínio de há 120 anos. Aparenta idade centenária, seria muito jovem à data da instauração da República no Brasil e encontra-se solitário mas saudável na floresta submontana vizinha da Baía de Guanabara. Será também o último Imperador da Mata Atlântica.
Infortunadamente, de todos estes espécimes apenas um frutifica com regularidade: o de Sydney. Pratica-se, então, um rito sublime. Os frutos são recolhidos com o maior cuidado e as sementes enviadas por avião para o Brasil, mais exactamente para Eugênio Arantes de Melo, um dos membros do “Grupo do Imperador”.
A germinação destas sementes é de uma excepcional dificuldade, com reduzidíssimo índice de êxito. Mas Eugênio já possui nos terrenos adjacentes à sua casa em Ipatinga, Minas Gerais, alguns pequenos Imperadores a caminho dos dois anos (um deles na foto ao lado, com 60 dias). Filhos de mãe nascida no Brasil e residente na Austrália para onde viajou em 1864. Ali foi plantada com todas as honras por um amigo do imperador Pedro II, Sua Alteza Real o Príncipe Alfred, filho de Vitória, Rainha do Reino Unido e futura imperatriz da Índia.
Esta árvore dava um filme.
Nota. Agradeço ao meu amigo Gerald Luckhurst, notável arquitecto paisagista inglês a residir há anos em Sintra, a possibilidade de reproduzir aqui um fragmento da folhagem do Imperador de Lisboa, na sua fase exuberante. A estampa botânica de um Imperador jovem, extraída de uma publicação de 1874, pertence à colecção, inigualável no género, de Gerald. A quem se interesse por temas botânicos, sobretudo no âmbito da flora de Sintra, recomendo vivamente o seu blog jardimformoso.blogspot.com (em língua inglesa).
A foto do Imperador-bebé é do seu “cuidador” Eugênio Arantes de Melo, que tem um “site” de referência obrigatória: Árvores do Brasil. Quem pretenda conhecer mais em pormenor a história do Imperador poderá encontrar aí espaço alargado de informações, fotos e um desenvolvido texto (em português do Brasil) que escrevi há três anos a pedido deste membro pioneiro do “Grupo do Imperador”: www.arvores.brasil.nom.br/Chrysophyllum/index.htm
As caricaturas do imperador Pedro II e do Conde de Ficalho são igualmente de um velho amigo, Rafael Bordalo Pinheiro.
Post relacionado:http://ogalodebarcelosaopoder.blogspot.com/2009/07/dia-da-natureza.html