Espanha. Seis em cada dez querem referendo à monarquia
https://expresso.sapo.pt 06.01.2019
Atacado pela esquerda e pelos separatistas, Felipe VI não é tão popular como foi o pai
A associação de estudantes da Universidade Autónoma de Madrid (UAM), uma das mais prestigiadas do panorama educativo europeu — e onde o atual rei de Espanha, Felipe VI, concluiu o seu curso de Direito —, organizou um referendo sobre a monarquia em Espanha, no âmbito de um “processo democrático para debater tudo”, que suscitou grande interesse noutras universidades espanholas, onde se pretende emular essa iniciativa.
A proposta não teria grande importância se não fosse o facto de se somar a muitas outras, de variadas origens e orientações. No seu todo, mostram um crescente interesse por submeter a debate a organização do Estado espanhol, consagrado como monarquia parlamentar pela Constituição de 1978, da qual se comemoraram em dezembro 40 anos de existência.
Eis mais uma etapa do processo de crise na instituição, que grassa desde os últimos anos do reinado de Juan Carlos I (1975-2014). O efeito mais imediato do crescente descontentamento da população foi a abdicação do monarca — que faz hoje 81 anos — a favor do seu filho e herdeiro. Já no trono, Felipe VI sentiu a necessidade de abordar uma reforma integral do sistema de funcionamento interno da Casa Real e das suas imediações.
Agora, o sentimento antimonárquico tem novos fundamentos. Já não é uma sucessão mais ou menos anedótica de movimentos políticos ou propostas cívicas, parecendo antes responder a uma estratégia bem definida com o objetivo concreto de restaurar o sistema republicano em Espanha. Os seus defensores visam restaurar o ímpeto interrompido em 1936 pelo golpe de Estado militar que instaurou a ditadura do caudilho Francisco Franco.
O Parlamento catalão, a Câmara Municipal de Barcelona e vários outros concelhos da Catalunha pedem a abolição da monarquia e aprovaram, recentemente, moções que reprovam a figura de Felipe VI. Estas foram imediatamente alvo de recurso apresentado perante o Tribunal Constitucional por iniciativa do chefe do Governo, o socialista Pedro Sánchez, que está a liderar um cerrar de fileiras das instituições do Estado em defesa da Constituição, ao mesmo tempo que pretende reformá-la para transformar Espanha numa federação.
IMUNIDADE RESISTIU
A Esquerda Unida (IU), grupo político que alberga o antigo Partido Comunista de Espanha, ordenou a todos os seus vereadores que apresentem moções antimonárquicas em todos os municípios onde estejam representados. Pablo Iglesias, líder do Podemos (P’s, esquerda populista), aliado do Executivo de Sánchez, promoveu um projeto de lei para suspender a imunidade jurídica do Rei e da sua família mais próxima. O diploma veio a ser derrotado no Parlamento por não ter obtido o apoio do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE, centro-esquerda), do Partido Popular (PP, centro-direita) e do Cidadãos (centro-direita liberal).
O P’s também fracassou no propósito de criar uma comissão parlamentar que investigasse as finanças de Juan Carlos, incluindo a suposta cobrança de comissões chorudas pela sua intervenção em diversos negócios nacionais.
Neste ponto da crise confluem, além disso, vários vetores que acrescentam a esta questão pormenores especialmente significativos. Por um lado, as instituições separatistas catalãs, que são as mais ativas na demonstração externa do seu desprezo pela instituição monárquica (depreciações públicas da família real, queima de efígies e fotografias de Felipe VI, retirada dos símbolos da coroa dos edifícios oficiais…), calculam que uma crise profunda da monarquia teria o poder de dinamitar todo o sistema institucional espanhol, o que facilitaria grandemente o processo da independência da Catalunha. Recorde-se que a 3 de outubro de 2017, dois dias após o referendo de autodeterminação realizado à revelia da lei, o rei proferiu um discurso televisivo muito duro para com o separatismo, apresentando-se como garante institucional da unidade da nação espanhola, que considera um dos bens mais prezados da etapa democrática.
No mesmo sentido, a esquerda mais conspícua, que neste momento é representada pelo P’s (com o apoio de outros grupos nacionalistas de várias regiões), não deixa de recordar que o seu espírito é republicano e que a essência da Transição de 1978 já foi superada pelos anos.
HOJE O REI, AMANHÃ O REGIME
Nicolás Redondo Terreros, destacado dirigente socialista basco e agora reputado politólogo, resumia a situação num recente artigo de jornal: “Trata-se de uma estratégia planificada para superar a Constituição de 1978. Os independentistas sabem que no quadro institucional a independência é impossível […] e o Podemos nasceu com a vontade de superar uma Transição que considera muito defeituosa. O alvo não é o rei, embora assim pareça; o alvo é a Constituição. Felipe VI é um pretexto para uma mudança de regime.”
Por outro lado, as mudanças produzidas na sociedade espanhola durante os últimos anos não previram a consolidação de um sentimento monárquico cuja robustez sempre foi débil. Juan Carlos I, que renunciou à existência de uma corte aduladora e aos vastos poderes que lhe haviam sido outorgados por Franco para, contra as intenções do ditador e mal este morreu, promover em Espanha um sistema plenamente democrático, ganhou o apoio de boa parte da população. Era costume dizer-se que o país estava cheio de “juancarlistas”, enquanto os verdadeiros monárquicos sempre foram escassos.
Essa bagagem de simpatias foi-se deteriorando à medida que iam sendo conhecidos escândalos de diversas épocas relacionados com a personalidade do agora rei emérito e de membros da sua família: amigos e relações pouco recomendáveis, a agitada vida sentimental de Juan Carlos, a implicação do seu genro, Iñaki Urdangarín, em negócios fraudulentos que o conduziram a uma prisão de Ávila, o desmembramento da família devido a estas circunstâncias… embora Felipe VI tenha feito tentativas verdadeiramente louváveis para corrigir esses desvios desde o início do seu reinado, a sua ligação com a maioria da população, sobretudo com os sectores mais jovens, é ténue.
POPULARIDADE ABAIXO DOS 50%
Há que ter em conta que 80% dos cidadãos espanhóis nunca tiveram oportunidade de se pronunciar sobre o tipo de chefia do Estado no seu país, fosse porque não tinham nascido ou porque não tinham idade para votar quando foi submetida a referendo a Constituição de 1978 (a 6 de dezembro desse ano, com 91,8% de votos favoráveis e uma participação de 67,1%).
Estipula essa Lei Fundamental, no seu artigo 57, que “a Coroa de Espanha é hereditária nos sucessores de S. M. Don Juan Carlos I de Borbón, legítimo herdeiro da dinastia histórica. A sucessão no trono seguirá a ordem regular de primogenitura e representação, sendo preferida sempre a linha anterior às posteriores; na mesma linha, o grau mais próximo ao mais remoto; no mesmo grau, o varão à mulher, e no mesmo sexo, a pessoa de maior à de menor idade”.
Há poucos dados disponíveis sobre a popularidade atual da instituição. O Centro de Investigações Sociológicas (CIS), organismo paraestatal prestigiado e eficaz na realização de inquéritos, não faz nenhum sobre a monarquia há três anos. Outros institutos de opinião (Electomania/CTXT, IPSOS GlobalAdvisor) publicaram, nos últimos meses, estudos dos quais se infere que a monarquia está abaixo dos 50% de consideração positiva em Espanha, que 6 em cada 10 inquiridos são partidários de uma consulta ou referendo sobre a instituição, e que a monarquia espanhola é a que menos apoio popular recebe na Europa.