História
A razão nos trópicos
Chegam à internet versões digitalizadas da correspondência
de Pedro II com cientistas, artistas e inventores europeus,
herdeiros do iluminismo tardio do século XIX
Marcelo Bortoloti
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Monarca brasileiro que destoava das cabeças coroadas de seu tempo pela defesa dos princípios republicanos e da liberdade de imprensa, dom Pedro II (1825-1891) nunca conquistou a unanimidade dos historiadores. Sua devoção às artes, à ciência e à tecnologia é vista por um grupo de estudiosos como apenas um adorno intelectual falso e sem profundidade. Outra corrente histórica dá como legítimo o pendor de Pedro II por vanguardas do conhecimento puro e aplicado com as quais os herdeiros do iluminismo fecharam gloriosamente o século XIX. O Museu Imperial de Petrópolis – abrigado no palacete da região serrana do Rio de Janeiro em que a realeza costumava passar o verão – acaba de dar uma contribuição que pode pôr um fim na argumentação histórica. O museu iniciou o processo de digitalização de documentos pertencentes à família imperial, deitando luz sobre a coleção de 100 cartas endereçadas a dom Pedro II por proeminentes intelectuais e cientistas. Estão lá as cartas do francês Louis Pasteur, do químico sueco Alfred Nobel e do poeta americano Henry Longfellow – de quem o imperador recebeu entusiasmado elogio pela tradução de seu poema The Sicilian’s Tale; King Robert of Sicily para o português: “As rimas duplas deram nova graça à narrativa”. A correspondência corrobora a imagem de um monarca genuinamente erudito. Além do inglês e do francês, Pedro II traduziu textos do hebraico que ainda hoje têm valor histórico pela fidelidade ao original. Conclui o historiador José Murilo de Carvalho, autor de uma das biografias do imperador: “Essas cartas reforçam a ideia de que poucos chefes de estado do seu tempo tinham cultura tão sólida”.
O contato de Pedro II com grandes intelectuais começou por iniciativa do próprio imperador, por volta de seus 25 anos. Ele viria a conhecer alguns de seus mais fiéis interlocutores quando estes se encontravam no Brasil em expedições científicas, muitas patrocinadas pelo monarca. Nessa lista, figuram o botânico alemão Friedrich Philipp von Martius e o geólogo suíço Jean Louis Agassiz. As cartas do Museu Imperial mostram que o envolvimento de Pedro II com cientistas, intelectuais e artistas era mais profundo do que o tradicional mecenato. Louis Pasteur, que retribuiu as gentilezas do imperador com a instalação de um busto dele no seu famoso instituto de Paris, compartilhava com o monarca detalhes científicos de suas pesquisas e o astrônomo francês Emmanuel Liais, estudioso dos eclipses, considerou determinadas observações de Pedro II sobre esses fenômenos um “precioso documento científico”. Aos 51 anos, o imperador embarcou para o exterior com o objetivo de conhecer pessoalmente o inventor Alexander Graham Bell, de quem encomendou o primeiro telefone a ser instalado no Brasil. Ele conheceu também o compositor alemão Richard Wagner e o escritor francês Victor Hugo. A prosa rica de dom Pedro II valeu-lhe o epíteto, dado por Hugo, de “neto de Marco Aurélio”, uma honrosa referência a César Marco Aurélio Antonino Augusto (121-180), o “imperador filósofo, autor de Meditações, um dos mais fascinantes textos humanistas da Antiguidade clássica.
A educação formal de dom Pedro II foi tratada como assunto de estado desde seus 5 anos de idade, quando o pai, Pedro I, partiu rumo a Portugal, deixando o filho sob os cuidados de tutores. Periodicamente, eles tinham de apresentar à Câmara dos Deputados relatórios em que prestavam contas dos avanços escolares daquele que, aos 15 anos, finalmente assumiria o trono. Numa cartilha contendo as metas acadêmicas para Pedro II, o artigo 10 se espelhava no tipo de educação que, àquele tempo, recebiam os jovens da realeza europeia: “O imperador deve ser formado como um sábio consumado e profundamente versado em todas as ciências, artes e até mesmo nos ofícios mecânicos”. Já na idade adulta, o monarca passaria a ser temido por professores de escolas em todo o país, uma vez que cultivava o hábito de aparecer no meio da aula e ficar ali, de lápis em punho, por tempo suficiente para avaliar o nível do ensino. Pode-se dizer que Pedro II, que além de ter uma cultura científica singular dominava seis idiomas, superou de longe o pai, cujas correspondências, também no acervo do Museu Imperial, não raro continham erros crassos de português.
As cartas de dom Pedro II fazem parte de uma coleção com mais de 80 000 documentos que pertenciam à família real – entre diários pessoais e rascunhos de ofícios e discursos de diferentes épocas. Guardados no museu de Petrópolis, eles serão digitalizados, o que facilitará o acesso aos escritos. Esses documentos começaram a ser colecionados ainda no século XIII. Quando a corte portuguesa fugiu para o Brasil, em 1808, carregou consigo a coleção, que seria distribuída por três palácios do Rio. Com a queda da monarquia e o exílio da família real, os documentos retornaram à Europa, onde ficaram por 43 anos no castelo d’Eu, no norte da França. Durante a I Guerra Mundial, para evitar que fosse saqueada, a documentação foi escondida no oco de uma parede falsa. Ela chegou ao Museu Imperial em 1948, doada pelo neto do conde d’Eu. O material que vem a público agora tem, entre tantos méritos, o de mostrar que, se a racionalidade está em refluxo no Brasil, a culpa não é da herança ibérica.
Interlocutores Fiéis
Entre 1850 e 1891, ano de sua morte, dom Pedro II trocou cartas com figuras proeminentes das mais diversas áreas do conhecimento
| Louis Pasteur |
Henry Longfellow | |
| Alfred Nobel |
Um grupo de amigos reunidos para divulgar, difundir, apoiar, os esforços de todos os brasileiros para restaurar a forma monárquica de governo.