A história oficial diz que d. Pedro I foi recebido em 1826 com pompa e circunstância em Torres e Santo Antônio da Patrulha (RS). Mas um documento de próprio punho do imperador à imperatriz contradiz muito do que já foi contado sobre a passagem de d. Pedro pelo Litoral Norte gaúcho.
Jornalista Nelson Adams Filho refez o trajeto original e uma parceria está revelando também novos dados sobre a história da Imigração Alemã no Litoral.
D. Pedro I e os colonos alemães em Torres (1826)
Por Rodrigo Trespach
A história oficial diz que o imperador d. Pedro I (1798-1834) foi recebido com uma salva de 101 tiros de canhão quando da sua chegada a Província do Rio Grande do Sul, em Torres, em 5 de dezembro de 1826. Ali teria visitado os colonos alemães recém chegados. Em Santo Antônio da Patrulha teria sido recebido pela Câmara de Vereadores, bebido água na fonte e pernoitado na casa onde hoje se encontra o Museu Caldas Júnior, entre outras histórias popularmente muito difundidas.
Boa parte disso pode não ser verdade. Um documento de próprio punho do imperador endereçado à imperatriz d. Leopoldina (1797-1826) contradiz muito do que já foi contado sobre a passagem de d. Pedro pelo Litoral Norte gaúcho.
Carta D. Pedro Torres
O documento em questão, com data de 8 de dezembro de 1826, escrito em Porto Alegre e assinado por d. Pedro, um “esposo amante e saudoso”, foi redescoberto alguns anos atrás pelo historiador Fernando Lauck no Museu Imperial, em Petrópolis, no Rio de Janeiro.
Transcrita inicialmente pela professora Teresinha Bier, do Instituto Histórico e Geográfico de Santo Antônio da Patrulha, a importância do conteúdo da carta parece ter passado despercebida em um primeiro momento. Na tentativa de refazer o trajeto do imperador pelo litoral gaúcho é que o jornalista torrense Nelson Adams Filho se deu conta de que muita coisa estava errada na História do Litoral Norte.
Outros pesquisadores e historiadores já haviam se dedicado ao tema em suas obras, como Aurélio Porto, Ruy Ruben Ruschel, Carlos H. Hunsche e Juca Maciel, entre outros. Todos reproduzem e enaltecem a presença d. Pedro I, tanto em Torres quando em Santo Antônio da Patrulha – principalmente pelo fato do imperador ter pernoitado nestes lugares em sua viagem até Porto Alegre. Mas nenhum deles apresentou uma prova concreta e coerente das histórias narradas – que na verdade parecem ser uma compilação de fatos distintos e contraditórios, senão inverídicos.
Um dos fatos citados pela historiografia oficial é a possível visita de d. Pedro aos colonos alemães recém chegados a Torres. Mas, novamente, há poucas provas documentais de que este contato tenha, de fato, acontecido na viagem de vinda do imperador para o sul.
Afinal, teria ou não o imperador tido contato com os imigrantes alemães? Onde, como e quando teria ocorrido esse contato? São perguntas que a carta de d. Pedro, objeto de estudo de Adams Filho, parece poder ajudar a responder. Pelo menos em parte.
Sobre o contato do imperador com os alemães, em meu livro O Lavrador e o Sapateiro (EdiPUCRS, 2013) apresentei a transcrição de uma carta, também inédita na historiografia brasileira, do colono alemão Valentin Knopf, escrita em 1º de dezembro de 1827. Trata-se da única carta encontrada até agora em que um imigrante alemão faz um relato a seus parentes na Alemanha sobre a colonização em Três Forquilhas, onde a leva de colonos protestantes (luteranos e calvinistas) havia sido assentada em 1º de agosto de 1827 – a chegada a Torres ocorreu em 17 de novembro de 1826.
Valentin Knopf faz um relato pormenorizado da vida e da situação da colônia no Vale do Três Forquilhas. Em certa altura da carta, Knopf informa que “quando o imperador esteve de passagem por aqui, deu graciosamente a cada pai de família quatro mil réis”. Knopf só não relata o dia do ocorrido.
A carta de Knopf talvez seja o único documento conhecido e público que ateste a visita do imperador. O “por aqui” de Knopf refere-se a Torres, pois o imperador, de fato, passou por ali em 5 de dezembro de 1826, quando os alemães ainda estavam aguardando a distribuição dos lotes. Mas, de acordo com a carta do próprio d. Pedro e as pesquisas de Adams Filho, ele não dormiu em Torres naquele momento, o que contraria toda a história oficial da região. Conforme o documento, d. Pedro dormiu naEstância do Pacheco, localizada junto à Estância do Meio – segundo Adams Filho, hoje município de Arroio do Sal.
Nesse dia 5, ainda conforme relatou à imperatriz, d. Pedro permaneceu poucas horas em Torres e não fez qualquer menção aos colonos. Os alemães já estavam em Torres desde o dia 17 de novembro, portanto há quase vinte dias. A vinda dos imigrantes alemães ao Brasil – colonos e soldados mercenários – era um projeto coordenado pessoalmente pelo imperador. E a esposa, d. Leopoldina, era austríaca, de língua alemã como os colonos. Teria sido natural que d. Pedro fosse ver pessoalmente os imigrantes, como havia feito muitas vezes quando da chegada dos navios de imigrantes ao Rio de Janeiro.
Por outro lado, uma testemunha ocular da História, o tenente-coronel Francisco de Paula Soares Gusmão, comandante do Presídio das Torres e Inspetor da Colônia Alemã, relata o encontro com o imperador e as salvas de canhão, quando foi “alvorado o Pavilhão Brasileiro”, mas não faz referência ao encontro com os alemães. Ao menos nada foi encontrado até agora. É difícil acreditar que Paula Soares tenha deixado de mencionar o encontro entre o monarca e os colonos, que tinham vindo ao Brasil através de um projeto de seu governo.
Nem mesmo o visconde de São Leopoldo, que se encontrou com o monarca no seu retorno, em 25 de dezembro, relatou que d. Pedro teria se encontrado com os colonos, logo ele que fora o idealizador da colônia.
Segundo a carta do próprio imperador, às 6h30 na manhã daquele dia 5 de dezembro de 1826, Paula Soares havia transposto o rio Mampituba e já estava à beira-mar, em território de Santa Catarina. D. Pedro havia dormido “numa barraca de sapê abandonada” junto ao Arroio Grande (que hoje não existe mais), em área do futuro município do Passo de Torres (SC) e que era, na época, a Sesmaria dos Rodrigues. D. Pedro avistou Paula Soares – “encontramos um Oficial do Batalhão de São Paulo que vinha com ofícios” – e seguiu adiante para transpor o rio e chegar ao Baluarte Ipiranga, em Torres. Ali chegou e seu primeiro ato foi lavar-se e depois tomar café da manhã.
Essa ação teria durado cerca de duas horas e, teoricamente, o imperador estaria livre às 10h30. Mas não há nada relatado em sua carta, apenas que almoçou e às 14h15 montou a cavalo e dirigiu-se à Estância do Pacheco (hoje Arroio do Sal), onde pernoitou. Com ele estavam, entre outros, o fiel companheiro Chalaça – Conselheiro Francisco Gomes Pinto – e o Marquês do Alegrete.
Portanto, d. Pedro teria tido pouco tempo para visitar o arranchamento dos alemães – não mais do que quatro ou cinco horas – e ainda entregar dinheiro a cada uma das famílias, conforme descreveu o colono Knopf.
Porque D. Pedro não parou para visitá-los ao entrar na Província? A informação de que seu primeiro ato ao chegar a Torres foi lavar-se, talvez justifique. Estava cavalgando há seis dias e havia dormido naquela noite numa cabana de sapê abandonada. Seria natural que passasse direto pelos colonos em direção ao Baluarte do Ipiranga, uma paragem mais adequada. E ainda havia pressa em chegar à capital e inteirar-se sobre os acontecimentos da Guerra Cisplatina, motivo de sua viagem ao Sul.
O tal encontro com os colonos só pode ter ocorrido, então, no retorno de d. Pedro, em 25 de dezembro de 1826.
A imperatriz d. Leopoldina havia falecido em 11 de dezembro, depois de agonizantes dez dias. D. Pedro estava em Porto Alegre e somente veio a saber da morte da esposa no dia 17, em Rio Grande. Imediatamente, d. Pedro retornou a capital. No dia 23 estava em Porto Alegre e dois dias mais tarde ele chegava a Torres. Nenhum documento pessoal até hoje foi encontrado sobre o itinerário de d. Pedro entre Rio Grande e Torres. Alguns documentos da época afirmam que d. Pedro sequer retornou a capital, seguindo diretamente até Santa Catarina, por terra, via Torres.
Foi em Torres, dia 25 de dezembro, ao receber do Marquês de Quixeramobim as cartas da Corte, que d. Pedro ficou sabendo da situação delicada no Rio de Janeiro. Corriam boatos de que a imperatriz teria sido envenenada por Domitila de Castro, a Marquesa de Santos e sua amante. A casa de Domitila tinha sido apedrejada e ameaçada de invasão. Pelas ruas, mercenários alemães, além da população, protestavam e choravam a morte da imperatriz.
Em suas “Memórias”, o Visconde de São Leopoldo diz que d. Pedro e o Marquês de Quixeramobim conversaram demoradamente e a sós no Baluarte Ipiranga, em Torres. Certamente sobre a situação delicada na Corte. Mas, como dito antes, não menciona a visita aos colonos.
Para Adams Filho é neste momento que d. Pedro ganha tempo para visitar os alemães. Fato confirmado pelo tempo gasto no trajeto de volta. Na viagem de vinda ao sul, d. Pedro levou dez dias entre o Rio de Janeiro e Florianópolis (de navio) e a Torres (a cavalo). No retorno foram 21 dias para fazer o mesmo percurso. Mais que o dobro. Adams Filho acredita que o monarca procurava ganhar tempo antes da volta ao Rio de Janeiro. Aí, então, teria tido tempo para conversar com os colonos em Torres e entregar dinheiro a cada um dos chefes de família, conforme relata a carta de Valentin Knopf.
Quanto à visita de d. Pedro a Santo Antônio da Patrulha, certamente ainda há muita coisa por se descobrir. Certo é que o imperador não passou pela cidade tampouco dormiu ali em sua viagem de ida até Porto Alegre. A passagem pode ter ocorrido – com um tempo exíguo – em sua viagem de retorno de Rio Grande (ou Porto Alegre) para Torres. De qualquer forma, a História precisa ser reescrita.
Por Rodrigo Trespach
Em parceria com Nelson Adams Filho
Artigo publicado originalmente no Portal Litoralmania, em 26.06.2015
Arquivos Consultados:
Museu Imperial, Petrópolis, RJ.
IHGSAP, Santo Antônio da Patrulha, RS.
Referências bibliográficas:
Hunsche, Carlos H. O ano de 1826 da Imigração e Colonização Alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Metrópole, 1977.
Pinheiro, José Feliciano Fernandes. Memórias do Visconde de S. Leopoldo. Compiladas e postas em ordem pelo conselheiro Francisco Ignácio Marcondes Homem de Mello. In: Revista do IHGB. Tomos XXXVII e XXXVIII. Rio de Janeiro, 1874 e 1875.
Porto, Aurélio. O trabalho alemão no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Est. Graf. Terezinha, 1934.
Soares, Tenente-Coronel Paula. Memória das Torres. In: Revista do Arquivo Público do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: 1924, pp.60-67.
Trespach, Rodrigo. O Lavrador e o Sapateiro: memória, tradição oral e literatura. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2013.