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Quando um Chefe de Estado (Monarca ou Presidente da República) consegue projetar sua figura aos olhos do povo?

Todo o contato humano exerce uma influência afirmativa ou negativa. Ainda quando essa influência é neutra, quer dizer fechar o guichê, “não trato com ele”, ainda há ali uma afirmação. 

Um Chefe de Estado tem sua presença muito mais realçada do que a de um particular. Então, pergunta-se: essa presença não exerce um efeito sobre toda a nação? Exerce. Qual é esse efeito? Qual foi o efeito pessoal de D. Pedro I? Qual foi o efeito pessoal de D. Pedro II? Como eram eles? Como era a personalidade deles? Como o Brasil os recebeu? Como foram os primeiros presidentes da República Velha? Como foi o Getúlio?

Plinio Corrêa de Oliveira

Quando um Chefe de Estado (Monarca ou Presidente da República) consegue projetar sua figura aos olhos do povo?

Santo do Dia, 23 de novembro de 1985,

A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro “Revolução e Contra-Revolução”, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

Eu acho que há dois modos de a gente fazer uma reunião. Um modo é a gente vir com um tema de que os ouvintes não estão apetentes. A gente torna o tema interessante e desperta apetência. Depois, então, os ouvintes entram e aproveitam a reunião. Mas isso é um modo difícil, porque nem sempre a gente tem uma apetência comandada. Outro modo que é fazer a reunião assim: ver qual é o tema de que os ouvintes tem apetência e a gente conduz-se o tema a um tema próximo de que a gente também queira tratar.

Isso é a marcha do “proche em proche”. “Proche”, em francês, quer dizer próximo. De “próximo em próximo”, a gente vai aonde se quer. A gente se encontra a meio tema (não a meio termo) mas a meio tema. Se eu fosse fazer uma exposição assim, a seco da história do Brasil, à meia noite de um Sábado, era muito pouco provável que houvesse interesse pelo tema.

Por exemplo, se eu fosse começar por dar aos senhores as Capitanias, os Governadores: a lista, [escrita] no quadro negro, deles todos; data em que tomaram posse e em que saíram; a história das Bandeiras. Era muito pouco provável que os senhores tivessem apetência. Mas se nos encontrássemos a meio caminho era provável que eu despertasse a atenção dos senhores para um novo assunto pelo qual ainda não se interessem.

E o verdadeiro numa formação intelectual — aliás, sobretudo, numa formação espiritual — é alargar o campo do interesse, de maneira que os ouvintes da gente tenham largos horizontes, de largos campos de interesses. Não ficar tratando como especialistas de um tema – qual é a doença de que morreu Fernão Dias Pais Leme… Não me interessa. Não sei. Não sou médico; não fui contemporâneo dele; não me interesso saber porque ele morreu… está acabado. Isso não é tema para mim! Mas, alargar os horizontes é formação. Eu reputo que é minha obrigação tentar alargar os horizontes, já largos, dos senhores…

Com as anteriores reuniões da história do Brasil, o que eu fui fazendo foi isso: fui jogando no ar dados que com alguma conexão mais ou menos como um piloto que está a bordo, entrando num porto, vai atirando sondas para saber por onde é que o navio deve andar. Fui atirando sondas para ver quais eram os temas que interessavam mais. E acabei percebendo o seguinte:

— Agora, estou me lembrando da reunião que dei. Veio-me tudo à memória. Acabei percebendo que um tema de história do Brasil que interessa muito aos senhores – e, aliás, corresponde à mentalidade do ambiente brasileiro, totalmente – é o seguinte: cada chefe de Estado que passa é uma figura – ele governa e a gente pode fazer a história do governo dele. O governo dele o que é? É o conjunto de atos de caráter político, diplomático, econômico, administrativo etc., com os quais ele dirigiu o Estado brasileiro durante o período de governo dele. Seja um monarca, seja um presidente da República, seja um ditador. Pouco importa. O governo dele é este. É curioso, esta é uma faixa na qual se pode estudar a história de um povo.

Mas há uma outra faixa que não é assim — e esta me parece muito mais brasileira: um Chefe de Estado consegue ou não consegue projetar, seja presidente da República, ou monarca, seja qualquer outro — consegue ou não consegue projetar a sua figura aos olhos do povo, de maneira a ser uma personalidade que marque por sua presença a vida psicológica, a vida intelectual, a vida afetiva do povo.

Se ele consegue isto, o período de governo dele é uma era na História. E quando ele sai, o colorido da história muda. Tem pouco que ver com a diplomacia, com as finanças, com a guerra e com tudo mais. É a apresentação dele e a ação que toda a pessoa exerce sobre a outra, quando dois homens estão juntos.

Os senhores tomem dois homens num gabinete dentário, por exemplo, estão esperando a hora de serem atendidos… Eles não se conhecem, olham-se vagamente e não se interessam um pelo outro. Rejeitam-se! Hum… Hom…. Dá-se isso. Dir-se-á: eles não exerceram influência um sobre o outro. Não é verdade. Naquela mútua rejeição cada um afirmou alguma coisa de si que o outro rejeita. E naquilo, eles se acentuam em alguma coisa.

Todo o contato humano exerce uma influência afirmativa ou negativa. Ainda quando essa influência é neutra, quer dizer fechar o guichê, “não trato com ele”, ainda há ali uma afirmação.

Um Chefe de Estado tem sua presença muito mais realçada do que a de um particular. Então, pergunta-se: essa presença não exerce um efeito sobre toda a nação? Exerce. Qual é esse efeito? Qual foi o efeito pessoal de D. Pedro I? Qual foi o efeito pessoal de D. Pedro II? Como eram eles? Como era a personalidade deles? Como o Brasil os recebeu? Como foram os primeiros presidentes da República Velha? Como foi o Getúlio?

São temas de que se poderia eventualmente tratar. Parece-me que nesta faixa interessaria muito mais do que estudo de finanças, de…

Então, nós vamos expor um pouco isso.

Dom Pedro I, último retrato (por Simplício de Sá)
Dom Pedro I, último retrato (por Simplício de Sá)

Creio que nos livros de História há fotografias de gravuras representando D. Pedro I. Os senhores devem ter visto como ele era. Era um príncipe romântico por excelência. A Europa estava sob o signo do romantismo. E fazia parte do romantismo uma sentimentalidade opulenta, de floresta virgem assim, ligada a um gosto pela aventura, e a uma certa ponta de heroísmo pessoal. Sem isso não se era um verdadeiro herói de romance.

D. Pedro I, modelado pela época, foi um verdadeiro herói de romance. Os heróis de romance têm muito de romance e pouco de herói. Eles não merecem ser chamados de heróis, a não ser num certo sentido da palavra, porque aquilo não é heroísmo: satisfazer seus impulsos não é heroísmo. Dirigi-los é heroísmo! Dirigi-los, segundo a lei de Deus, isso é o heroísmo!

Mas, ele era um homem eminentemente impulsivo. E toda a vida dele – que poderia ter sido uma série de êxitos brilhantes – foi uma série de fracassos. Mas esses fracassos foram brilhantes, porque nas derrocadas dele, ele as conduzia com a virtuosidade de um herói de teatro. E a teatralidade dele fez dele uma pessoa que inquietou os pacatos brasileiros, mas um pouco os deslumbrou. Agitou os portugueses de então – pouco pacatos e muito combativos – mas os desorientou. E marcou a fundo as duas nações.

Eu contei aos senhores o lance da vida conjugal dele com a Imperatriz Dona Leopoldina.

Dom Pedro I era um homem, em certo sentido da palavra, brilhante. Ele era muito vistoso, tinha muita vitalidade, era um homem — não preciso dizer aos senhores — muito bem nascido. Tinha um todo verdadeiramente aristocrático que ele conduzia com idéias democráticas, e acessos de absolutismo, dependendo da veneta [impulso, n.d.c.] dele. Ele era fundamentalmente veneteiro [cheio de impulsos]…

O que é que teria sido o êxito de D. Pedro I?

Se nós considerarmos o assunto do ponto de vista meramente da ambição pessoal dele, da situação em que ele estava como homem ambicioso, o que é que ele poderia ter feito?

Ele poderia ter feito o seguinte: ele declarou a independência do Brasil, e o fato ficou consumado. A partir do momento em que ele declarou essa independência, ele rachou os Estados do pai dele. Os Estados do pai dele eram muito amplos, compreendiam Angola, Moçambique, Guiné,[Goa, Damão, Diu, Timor, São Tomé e Príncipe e] Macau. Essas coisas todas que pertenceram a Portugal… Ele [Dom João VI] tinha um Império muito vasto, o D. João VI. Mas a maior esmeralda ou rubi desse Império caiu-lhe da coroa no momento em que o Brasil se separou.

Acontece o seguinte: o Brasil quando se separou de Portugal já não era colônia de Portugal, mas reino unido a Portugal. Por que reino unido a Portugal? O que é que vem a ser reino unido?

Os senhores devem ter ouvido dizer que os antigos reis de Portugal se chamavam: Rei de Portugal e do Algarves. O que é que é Algarves? Algarves é uma parte sul de Portugal, chamada Algarves por causa do sentido de uma palavra moura, terra aonde habitam mouros, que foi durante muito tempo ocupada por mouros. Então se chamava: Os Algarves. Como a dinastia portuguesa conquistou os Algarves para Portugal, e aquilo era um reino mouro, o rei de Portugal ficou sendo rei de Portugal e dos Algarves. Algarves não ficou uma colônia de Portugal. Um reino bem menor do que Portugal, mas com suas leis próprias, com seus costumes próprios e suas liberdades próprias como são, hoje em dia, a Inglaterra e a Escócia. A Escócia não é uma colônia da Inglaterra, é um reino-irmão da Inglaterra, geminado com a Inglaterra. E que tem lá seus hábitos, seus estilos, sua autonomia etc., embora constitua um todo com a Inglaterra.

D. João VI tinha declarado o Brasil reino unido com Portugal. Esse reino foi separado por D. Pedro I e declarado Império. Mas não estava dito que o Imperador do novo império não pudesse herdar a coroa de Portugal. Não estava dito que separando-se uma monarquia da outra, ele não pudesse herdar a velha monarquia e reconduzir à união. E a jogada inteligente dele, a meu ver seria, se ele olhasse para a ambição pessoal dele, colocar as coisas de tal maneira que quando o velho Dom João VI morresse — era um homem de vida longa, se cuidava como os senhores viram no episódio da cesta com os siris — ele podia facilmente levar as coisas de maneira a sossegar os brasileiros quanto à animosidade que havia deles com os portugueses. E aí, quando morresse D. João VI, ele tentar reunir os dois reinos. Porque é mais agradável ser rei de dois Estados do que ser rei de um Estado só. É evidente.

Ele aí teria uma linda tarefa para executar — não sei se os meus muito queridos portugueses que estão aqui no auditório vão concordar comigo — um problema muito bonito para resolver: se há um mundo português do lado de lá do Atlântico, [com] o peso ponderável pequeno, de um território pequeno, de uma economia metropolitana pequena, mas o peso enorme de uma História gloriosa, de uma tradição enorme, de uma ligação afetiva, “quand même”, muito grande entre Brasil e Portugal; o peso considerável de todo o império colonial que Portugal ainda tinha e com o qual o Brasil perdeu o nexo quando se tornou independente, não era inteligente ele ter procurado os brasileiros e ter proposto a eles — como aos portugueses — uma “Commonwealth” à maneira da Inglaterra com todos esses Estados?

Era evidente que o Brasil iria ficar tão grande que, em certo tempo não seria mais governável a partir de Lisboa. Era uma coisa evidente. É como o Canadá e a Inglaterra. Olhem que a desproporção era muito menor: Canadá é muito menor do que o Brasil; a Inglaterra creio que é um pouco maior do que Portugal.

O Canadá não é governável a partir da Inglaterra. O Canadá gelado não é tão menor do que o Brasil, mas no gelo ninguém vive, nem as renas, nem os esquimós. O Canadá não gelado é muito menor do que o Brasil, é uma faixa.

Então, os ingleses têm tido bom senso de ir dando uma certa autonomia ao Canadá, para não pesar demais num cetro que acaba se quebrando. E fazendo um regime um pouco parecido com a velha monarquia austro-húngara, em que os imperadores da Áustria eram reis da Hungria, da Checoslováquia, eram duques de tal e tal lugar na atual Iugoslávia, e daí para fora. Tinham todas essas coroas juntas e iam tocando a política junto.

Havia um problema em que os velhos reis de Portugal tinham pensado. Está provado que o problema foi estudado em Conselhos de Estado. Não sei se se estuda isso no curso secundário de Portugal: era transferir a sede da monarquia portuguesa para o Pará. E fazer uma monarquia amazônica, a pouca distância de Lisboa – portanto governável meio de Lisboa e meio do Pará – mas através do Pará a “longa manus” sobre todo o Brasil.

Se os senhores quiserem, o Pará seria uma espécie de cotovelo: Lisboa – Pará – resto do Brasil. Isto seria uma grande coisa. Ele deveria, a meu ver, ter dirigido toda a política — se ele consultasse a ambição dele — no sentido de constituir uma monarquia bipolar: Pará–Lisboa. Quando os meios de comunicação fossem mais rápidos: Rio! Mas deixar esperar, deixar maturar a História.

Ele não fez isso. Ele chegou aqui ao Brasil, brigou com os brasileiros, foi para Portugal, abriu uma questão, brigou com os portugueses. E morreu prematuramente tuberculoso em Portugal. Da doença dos heróis de romance, que achavam bonito morrer tuberculoso.

Como se deu isso? Ele chegou aqui e declarou a independência, foi coroado imperador. Existe a coroa dele. Aliás, uma bonita coroa que está no museu de Petrópolis. Foi o bispo do Rio de Janeiro que o coroou. Ele ficou entronizado como imperador do Brasil.

E começou um movimento para tornar a monarquia dele, que era uma monarquia absoluta — em Portugal vigorava a monarquia absoluta — ele recebeu uma monarquia absoluta nas mãos, numa monarquia parlamentar. Convocação de um Parlamento e uma Constituição que limitasse os poderes dele.

Ele o que é que fez? Ele disse que “sim, sem dúvida”, mas com uma condição: a Constituição seria concedida por ele, e inauguraria o Parlamento etc., mas quando ele quisesse fecharia o Parlamento e revogaria a Constituição.

Os senhores estão compreendendo que era uma hipótese que de nenhum modo agradaria aos liberais, porque aquela liberdade seria condicional. Na hora em que ele franzisse a sobrancelha, psssst! para casa todo o mundo! Disseram a ele que não aceitavam.

Saiu daí uma tensão medonha que acabou dando nesse negócio: ele teve que ir para Portugal, porque ele não queria mais governar no Brasil. E foi expulso do Brasil.

Ele embarcou com a segunda esposa dele, D. Amélia de Leuchtenberg, com a filha que ele tinha deixado da marquesa de Santos que era a duquesa de Goiás, e com uma filha que ele tinha tido (não sei se nasceu no Brasil ou em Portugal) de D. Amélia Leuchtenberg, chamada Amélia também. Essa Leuchtenberg era uma princesa alemã.

Eles embarcaram num navio e lá foram para Portugal.

Chegado a Portugal, ele encontrou a seguinte situação: O irmão dele (Dom Miguel, que era mais moço do que ele) tinha-se candidatado ao trono português. Morreu D. João VI, Dom Pedro I tinha ficado imperador do Brasil e tinha-se descolado de Portugal. Logo, argumentava Dom Miguel, ele não tem mais direito a ser rei de Portugal. Uma vez que ele traiu a nação, separando uma parte da nação da outra, ele não pode mais ser rei. O rei sou eu!

Dom Pedro I dizia o contrário: não, eu não renunciei e agora que deixei o Brasil, eu quero governar aqui em Portugal!

Mas a isto se somava uma complicação de caráter ideológico, que era a seguinte: também os monarquistas portugueses estavam divididos. Divididos pela mesma questão do que no Brasil era a grande questão moderna daquele tempo, era saber se uma monarquia devia ser absoluta ou parlamentar. Se fosse absoluta, seria o Ancien Régime; se fosse parlamentar, seria a monarquia da Revolução Francesa. E o problema era esse.

Os partidários de D. Miguel eram os monarquistas absolutistas do Ancien Régime. E os partidários de D. Pedro I eram os monarquistas parlamentares. E ele que aqui tinha sustentado o princípio da monarquia absoluta, sustentando que ele tinha direito de fechar o Parlamento quando ele quisesse, ele em Portugal chefiou o Partido liberal.

E daí guerra entre os dois partidos que dividiu Portugal a fundo. Quase todas as boas famílias de Portugal tiveram antepassados lutando ou do lado dos miguelistas ou do lado dos partidários do D. Pedro I, ou de sua filha, Dona Maria da Glória, pois quando ele morreu deixou os direitos para essa filha.

Naturalmente, a maçonaria, cujo poder era muito ostensivo naquele tempo, apoiava Dom Pedro I. Ela o combateu aqui; ela o apoiou lá. Aqui, ele foi absolutista (mais ou menos); e lá, ele foi liberal. A maçonaria era revolucionária e queria a liberdade de todos os modos.

D. Pedro I morreu. A imagem dele apagou-se na recordação dos brasileiros como fato político. Como fato lendário-histórico, ficou. E ficou como a de um príncipe tumultuoso e vário. Por exemplo, aqui ele se fez coroar segundo todos os ritos da Igreja Católica. Mas entrou para a maçonaria, tinha o nome de irmão Guatemozin (último imperador asteca do México), por ser pagão. Conserva-se, se não me engano no museu do Rio (onde vi), o malhete e as outras insígnias maçônicas com que ele foi recebido na maçonaria e usou.

Então, uma contradição: lá em Portugal, ele foi o irmão da maçonaria. Muito curiosamente, veio parar em mãos de minha família uma espada que era dos partidários de Dona Maria da Glória, filha de D. Pedro I, e, portanto, do mesmo partido — era uma espada (vejam as coisas como são; nem sei como é que ele veio parar nas mãos de minha família) em forma ligeiramente de iatagã. Sabem o que é iatagã: aquela espada curva, turca. Na copa da espada, uma cabeça de turco com turbante e tudo, pareceu-me que esculpida em marfim. Não posso ter a certeza, porque era colorida. E acho que o marfim não comporta cores. Não se pode pintar o marfim? Pode pintar? Então acho que era de marfim. Minha dúvida era essa.

Era uma espada que tinha escrito gravado: “Viva D. Maria I”. Era, portanto uma espada com que tinha combatido algum homem graduado, provavelmente nobre pelo tipo da espada, a serviço de Dona Maria I. Quer dizer, portanto, da causa constitucionalista.

Então, aqui a maçonaria favorecia a nostalgia dos impérios pagãos que a invasão portuguesa e espanhola derrubou. E na Península Ibérica ela favorecia a nostalgia do período árabe, pagão. Os que eram nostálgicos do período pagão, eram desejosos das liberdades da Revolução Francesa.

Infelizmente, quando se dividiram os bens de minha família, isso ficou com outro ramo da família e não sei que fim levou. Não houve jeito e eu não pude reter essa espada, que era uma curiosidade.

Apesar disso, há alguns lances brilhantes da vida de D. Pedro I: o casamento dele com Dona Leopoldina de Áustria – um fato brilhantíssimo. Depois, fato de ele ter proclamado a independência do Brasil – um fato que caiu na sentimentalidade nacional, o proclamador da independência. Depois, o fato de ele ser um homem cheio de repentes e de aventuras, etc., o próprio caso da marquesa de Santos, deram assim um certo colorido à vida dele, um colorido vivaz, nem sempre limpo, mas de uma pessoa cuja biografia se compreende que uma revista publique, é uma coisa interessante, uma coisa alta em cores.

No total, na recordação dos brasileiros é positiva. A gente vê, por exemplo, uma coisa curiosa em Brasília. A capital foi transferida do Rio para Brasília. Brasília, a cidade do Oscar Niemeyer, a cidade moderna. Na sala do presidente da República, uma sala inteiramente moderna, colocam atrás da cadeira de despacho dele, um quadro representando D. Pedro I como imperador do Brasil, com todas as suas condecorações.

Não sei se os senhores veem no sentir de toda a nação, o que isto representa? Não foi só um homem que pegou o quadro e pendurou lá. Um chefe de Estado hábil pendurou-o lá por saber que causava bom efeito a todos os visitantes do Exterior e do interior ao chegar lá e encontrar aquela recordação, daquele homem, com aquele passado assim, que poderia dar a impressão conjunta de um voo de arara. Imaginem que uma arara voasse dando todas suas penas coloridas a ver, mas num voo meio aloucado, ora quase caindo, ora subindo etc., etc.

O voo não seria bonito, mas daria a oportunidade de ver, em vários aspectos, lindas penas. Este foi o reinado do Dom Pedro I, o sulco que deixou na alma e na formação psicológica do Brasil. Parece-me que é o aspeto que está interessando mais aos senhores.

D. Pedro I tinha como ministro um homem com quem ele viveu toda a vida numa amizade adversária e numa adversidade amiga, um homem superior a ele, em tudo aquilo em que ele não era grande; e inferior a ele em tudo quanto ele era grande. De maneira que eram superioridades desencontradas. Esse homem era: José Bonifácio de Andrada e Silva.

Os três Andradas, os senhores sabem, eram inteligentíssimos. Eram santistas e tinham feito em Coimbra estudos excelentes. Depois viajaram por vários lugares da Europa, sobretudo o Bonifácio e se tornou amigo de muitos homens que haveriam de trabalhar depois da Revolução Francesa.

Voltou no Brasil com idéias meio de Revolução Francesa. Mas, ele era, o José Bonifácio, caracteristicamente um aristocrata brasileiro. Vale a pena os senhores se deterem na consideração das fotografias representando gravuras dele, para os senhores terem idéia do que era um aristocrata brasileiro.

É até uma coisa engraçada, para os senhores verem como são estas coisas que eu toda a vida achei George Washington, o primeiro presidente dos Estados Unidos, o causador da independência norte-americana, mais ou menos contemporâneo do José Bonifácio, não inteiramente, achei sempre meio parecido com o José Bonifácio. Não parecido fisicamente, mas com ar comum. Depois, eu vim a saber que o George Washington era de uma família de gentis-homens ingleses radicados nos Estados Unidos. E que o tom aristocrático de Washington era o tom de José Bonifácio e Silva.

Havia no Brasil duas espécies de aristocracia; uma era a aristocracia dos nobres vindos de Portugal para cá, nomeados pelo rei; outra era uma aristocracia nascida da terra. Famílias que vieram para cá, não aristocráticas, que se constituíram aqui, tiveram larga descendência e tiveram uma longa série de gerações de proprietários rurais. Exercendo seu domínio sobre extensões enormes. E que tomavam um ar, uma tradição e um jeito aristocrático e que descendiam em geral, dos fundadores do lugar em que eles viviam. Esses eram reconhecidos pelas leis coloniais do Brasil como aristocratas. Não eram menos autênticos do que os portugueses.

Na família de meu pai não há nenhum sinal de que a família tenha ascendência nobre em Portugal. Há até um vislumbre do contrário, de que era gente humilde. O fato é que eles vieram — parece-me que eu sou, não me lembro bem, o oitavo ou sétimo descendente do primeiro Corrêa de Oliveira. Todos proprietários rurais vão constituindo por si uma continuidade aristocratizante. É uma aristocracia nascida da terra. Isso deu-se largamente. Era assim o José Bonifácio. Homem muito inteligente, muito cortês, muito representativo. Corroído pelas idéias liberais e pela ambição do mando.

Por alguma razão que eu não chego a especificar bem, conveio ter o imperador no começo. De tal maneira conveio que quando eles depuseram D. Pedro I, eles poderiam ter mandado embora com D. Pedro I os filhos, a descendência de D. Pedro I e D. Leopoldina. Eles não mandaram embora, conservaram aqui. Por quê? Por que eles quiseram conversar esse simulacro de monarquia no Brasil? Até hoje não compreendo.

Houve um fato: é que assim se assegurou a unidade do Brasil. Porque o Brasil era grande demais para não se fragmentar como as colônias espanholas quando ficaram independentes. A única coisa que poderia tornar unido era um chefe de Estado que não fosse de nenhuma das províncias brasileiras. Um Chefe de Estado que pairasse acima do Brasil como um símbolo.

Eu vejo que os senhores entendem e eu não preciso explicar. É uma coisa evidente. E é fato que, de início, a monarquia assegurou a unidade do Brasil. Até, a meu ver, afivelou demais. O Brasil não teve federação, a não ser quando teve República.

O Brasil era uma nação tão unida, tão unitária no tempo do Império que para trocar as fechaduras de uma agência bancária no Amazonas era preciso licença do Imperador no Rio de Janeiro. Era amarrado ali!

Eu não acho isso bom. Eu sou muito anti-separatista, sou ferozmente anti-separatista. Mas sou muito a favor da federação, dos poderes locais que respirem autenticamente, livremente. E não dessa burocracia enorme.

O fato é que os que expulsaram D. Pedro I quiseram conservar aqui os filhos de D. Pedro I, órfãos de D. Leopoldina e já então órfãos de pai também, porque o pai ia para longe, para uma outra vida, com uma outra esposa. Eles ficavam sem nada.

D. Pedro II tinha duas irmãs: Dona Francisca e Dona Januária. “Dona”… eram umas meninasinhas. Graças em boa parte às futricas de José Bonifácio, D. Pedro I teve que sair do Brasil, e deixou como tutor dos filhos dele, o José Bonifácio, como mais capaz de educá-los, de orientá-los etc.

Conta-se que José Bonifácio foi ao palácio do Imperador, quando o imperador saiu para tomar contato com as crianças. Numa almofada lhe apresentaram o imperador deitado e ainda… Ele tomou com ternura a almofada com o imperador e disse: “Meu imperador e meu filho…” O que é uma exclamação muito brasileira.

A reverente compaixão nacional pousou sobre essas três crianças órfãs, isoladas, a bem dizer pupilas do país inteiro, e por cuja salvaguarda, por cuja educação, por cuja saúde, por cujo casamento era responsável a nação inteira também.

Então, há assim uma espécie de vínculo filial, afetivo — que eu vejo nas caras dos senhores que compreendem tão bem, que não preciso dar nenhuma explicação; não haveria de ser no Brasil que eu teria que dar explicação disso… — que levou a desabrochar em torno da figura de D. Pedro II e de todo o reinado dele, e de sua família, e do Brasil, uma espécie de relação familiar, uma espécie de monarquia familiar que vinha deste berço de onde renascia a monarquia. E que fez com que D. Pedro II, ao longo de sua vida, se tornou pai e depois avô do Brasil.

E que o reinado dele tenha sido um longo reinado patriarcal. Tanto mais patriarcal quanto mais as suas longas barbas iam ficando brancas. E os senhores veem bem que aquela barba branca concorria muito para a popularidade dele. Ninguém, nenhum publicitário ia recomendar que raspasse a barba, ou que reduzisse a um bigode faceiro. A idéia até desagrada. Aquela grande barba patriarcal tinha um sentido muito afim com o modo pelo qual os brasileiros gostam de ser governados.

Dom Pedro II, na abertura da Assembleia Geral (pintura de Pedro Américo)
Dom Pedro II, na abertura da Assembleia Geral (pintura de Pedro Américo)

Eu não devo aqui estar dando a longa história do reinado de D. Pedro II. Ele ficou imperador em 1830 e foi deposto em 1889. Calculem os senhores que são 59 quase 60 anos de reino. Foi de longe o homem que mais longamente governou o Brasil. Eu acho, aliás, que não só se deveu a essa sobrevivência da monarquia, um pouco como Moisés vogando num bercinho no Nilo, assim também D. Pedro II nas suas almofadas nos braços incertos de José Bonifácio… uma criança sobrevivente — se deveu a isso não só a unidade do Brasil, mas o fato do Brasil não ter caído no regime dos “pronunciamientos” das repúblicas espanholas da América do Sul. Por dá cá aquela palha, nas repúblicas espanholas na América do Sul, brigas… E um pouco herdadas do temperamento “caliente” da madre pátria, e brigas logo puxadas a tiro. Depõe um presidente, põe outro…. Lá vai aquela coisa.

Dado o jeito como somos nós, brasileiros, os senhores sabem que nós custamos a entrar na briga, mas para sair depois não é fácil. A gente se apaixona pela briga e… aquilo vai até onde for…

O Brasil teve praticamente, exagerando um pouco, 50 anos de paz. Houve alguns golpes de Estado, algumas coisas assim… mas que não tocaram a pessoa do monarca nem do poder central. Foram golpetes regionais, coisas desse gênero, não tocaram no poder central. Os senhores estão vendo que ele foi um símbolo de união e de paz no Brasil.

Ele parece ter compreendido isso perfeitamente. E desde o começo ele se colocou numa posição assim. José Bonifácio despertou nele um ardente desejo de desenvolver-se intelectualmente. E não há dúvida para mim de que ele foi um dos monarcas mais cultos de seu tempo. Se como culto os senhores entendem lido. Eu acho que essa classificação é um pouco discutível. Eu não sei se ele era tão inteligente. Não conheço um lance de grande inteligência dele. Mas era um homem que lia enormemente, e que tinha a ambição de ser conhecido no mundo inteiro como um grande intelectual. E foi. Os senhores vão ao (dicionário) Larousse, procurem os “Pedros” do Brasil e encontram referência de Pedro II assim: “imperador do Brasil de 1831 a 1889; foi um sábio distinto (que se distinguiu entre os sábios)”. Se correspondia com Victor Hugo e com outros grandes intelectuais daquele tempo. Quando ele ia à Europa, conversava, recebia visita dessa gente. Ia visitar essa gente… Ele não devia visitar. E dessa forma ele teve uma espécie de carreira intelectual ao lado da carreira política.

Mas essa carreira intelectual lhe dava prestígio no Brasil. Porque ter um imperador tido como sábio no mundo inteiro, dava cotação, e colocava-o a um nível superior a todos os homens de inteligência famosa no Brasil. E as houve muitas no Império… O Império teve gente muito inteligente. Porque sua projeção internacional era maior do que a de qualquer brasileiro, como sábio. Ele pairava nas nuvens.

Depois, de outro lado, acontece que o seu papel, pela Constituição brasileira, era de não entrar em nenhum partido político e não tomar a defesa de nenhum parido; manter uma espécie de equilíbrio entre os dois partidos. E ele se atinha estritamente à Constituição. Enquanto o pai dele era despótico e cheio de venetas, ele era de um temperamento bom, pachorrento, amável, muito cordial e cumpria a Constituição à risca.

Mas, encontrou uma saída: o prestígio pessoal dele sobre os políticos era tão grande que as atribuições de imperador ele as exerceu com sobriedade. Mas as atribuições de conselheiro dos políticos, ele as exerceu largamente: conselheiro extra-oficial. E faziam a ele a acusação de que ele, como prestígio pessoal, mandava no Brasil mais do que como monarca. E queriam ver nisso uma inversão na Constituição. Ele poderia dizer: “não, qual foi o artigo que eu violei? Não violei nada… Aconselhar-se comigo, numa ação privada? Eles podem aconselhar-se com quem quer que seja, só não podem aconselhar-se com o imperador?”

Agora, os srs. imaginem homem vindos de qualquer ponto do Brasil, do Rio Grande do Sul ao Amazonas, que vão governar, no Rio de Janeiro e que encontram, são novos no poder, encontram um monarca que está governando há vinte anos, há trinta anos, há quarenta anos, há cinqüenta anos… de uma memória prodigiosa, sabe tudo como se deu, como é que foi, como é que não foi; e sabe aconselhar para fora de suas atribuições; de maneira que ele ajuda os ministros a acertarem. Os senhores não pediriam conselhos a esse homem?

Com o jeitão dele, de bom pai de família, papai de todos os ministros mais novos que chegavam, conselheiro de todo o mundo que queria dele um bom aviso, uma boa ponderação, uma boa sugestão… Depois, acima de todos os outros, como imperador, como sábio, como homem que tinha no Brasil uma bela fortuna, ele estava meio invulnerável, meio por cima das nuvens e numa posição, portanto, meio de grande patriarca desta grande família chamada Brasil, e meio chefe de Estado.

Patriarca: como rei que governa como pai, e que é pai de todo o mundo e que dá licença a todo o mundo; conselhos a todo o mundo etc. Quer dizer, uma grande concórdia nacional dentro das paixões nacionais que havia, um partido, outro partido, brigas, saía porrete, falsificação de eleição. É uma coisa natural. Mas nunca era uma briga profunda, eram brigas superficiais. No fundo, uma grande tranqüilidade, que foi apenas perturbada pela guerra do Paraguai.

Nessa guerra do Paraguai, D. Pedro II se empenhou de tal maneira que quando a guerra começou ele era mocetão; e quando acabou, as barbas tinham ficado brancas. Provavelmente, ele compreendia que se ele perdesse a guerra, ele perdia o trono. Ele se agarrou à vitória do Brasil com toda a força: foi lá, lutou, entrou na história; mandou o Conde D’Eu, genro dele lutar também, deu todo apoio a Caxias, participou intensamente da guerra até Solano Lopes ser derrubado. Aí, um ano depois de ter vencido a guerra, mais ou menos (para os senhores terem uma idéia do sossego daquele tempo), ele mandou um ofício ao Parlamento pedindo, nos termos da Constituição, licença para se afastar do Brasil para descansar por causa da guerra.

Viagem de um monarca naquele tempo, viagem de navio, viagem lenta, levava mais ou menos um ano. E acrescentando que com as economias que tinha feito — a familiaridade da monarquia Brasileira — ele estava em condições de pagar todos os gastos da viagem dele e não precisava o Tesouro brasileiro entrar com um tostão.

Nesse período, o Brasil próspero e tranqüilo estendeu muito sua fronteira interior, quer dizer, a parte do solo brasileiro cultivada cresceu muito. Não foi preciso fazer reforma agrária. Tirava-se do Estado. É claro. Não havia dono, os fazendeiros entravam, abriam fazenda, aquilo era deles e está acabado!

Então, essa parte ficava sendo cada vez mais retalhada, e o Brasil ficou produzindo grande quantidade de víveres. O café e o fumo eram os produtos principais. Os senhores podem notar junto às armas do Brasil daquele tempo ramos de café e do fumo. Aliás, eu acho muito comercial e muito feia essa revivescência.

O Brasil precisou, e teve ele próprio a sua esquadra mercante. E saibam os senhores que a esquadra mercante do Brasil, feita de navios de madeiras das florestas brasileiras, foi a segunda do mundo.

Explica-se. Os mercados consumidores eram os Estados Unidos, um pouco o Canadá e, depois, as várias nações da Europa. Os mercados consumidores eram muito distantes do Brasil. O Brasil com o litoral enorme, precisando fazer navegação de cabotagem (quer dizer, interna), porque as estradas internas eram muito poucas, então ficava mais fácil comunicação por meio do mar. Sem muitos navios não era possível conseguir isso. O Brasil ficou com uma esquadra mercante colossal.

Qual era o estado das finanças?

Nas notas do tempo do Império estava escrito o seguinte: “mediante a apresentação desta cédula, encontrará Vª Sª no Tesouro Nacional a equivalente quantidade em ouro”.

É verdade, era só chegar no Tesouro e dizer: eu quero isto em mil reis-ouro, que eles davam e estava acabado. Mas como é muito mais fácil, fisicamente, transportar papel do que ouro, acontecia que os comerciantes pagavam um tanto para receber em papel e não em ouro. É claro, porque como valia exatamente a mesma coisa, para quem tem que ir, vamos dizer, daqui ao Rio de Janeiro carregando cem mil reis em ouro, era preciso um saco; cem mil reis em papel cabem numa bolsa. Era muito mais fácil. Resultado: se pagava… o papel moeda valia mais do que o ouro, ligeiramente mais, de tal maneira as finanças estavam prósperas. Era o ouro extraído das próprias minas do Brasil.

Havia inflação?

Não propriamente. Tirava-se do chão, cunhava-se e distribuía-se… Hoje não, aperta-se um botão, a máquina gira e saem as notas. Naquele tempo se tirava do chão. Ouro e prata. O peso delas em ouro e prata valiam em qualquer mercado do mundo. Era das melhores moedas do mundo.

Com isso, duas cidades cresceram sobretudo: São Paulo e Rio de Janeiro. Tornaram-se centros animados, de contato com o Exterior etc.

Houve apenas uma zona do Brasil que caiu: foi o Nordeste. Por que caiu? Plantava cana-de-açúcar que lhe dava todo o dinheiro para eles lá. E os alemães inventaram um modo de fabricar açúcar com beterraba. Era um direito deles… Resultado: caiu vertiginosamente o preço do açúcar. E as famílias de plantadores de cana empobreceram muito. Mas o resto do Brasil prosperou colossalmente. E daí um certo atraso, causa remota e não única, de um certo atraso do Nordeste. A fonte de sua riqueza daquele tempo caiu de repente. Não sei se está claro?

Durante esse tempo, D. Pedro II viajou prodigiosamente pelo Brasil. E o que esse homem assistiu de festa caipira é uma coisa incalculável!

Ele era um homem forte, muito robusto, e fazia viagens, às vezes, no lombo de burro e de cavalo, mas longas, pelo interior. E visitou o Brasil inteiro, e tomava notas. Ele tinha um famoso caderno preto, onde ele tomava nota de todo abuso que ele notava. E chegando ao Rio, ele mandava chamar os ministros e pedia interferência: tal juiz é ladrão; tal outro… e esse caderno preto era misterioso, ninguém lia, era só ele!

Nesse regime, esse homem conhecedor do Brasil palmo a palmo, conhecido pelo Brasil palmo a palmo, nesse regime ele se tornou íntimo de todo o mundo. Ainda firmou mais o peso dele.

Mas alguns fatores corroíam o trono dele. Quais eram os fatores que corroíam?

Primeiro, o fato de que ele era o único monarca do continente americano. A monarquia parecia uma forma de governo velha, que não pegava em terras novas. A tentativa de instaurar uma monarquia no México, com o Imperador Maximiliano, deu uma tragédia em Querétaro. Foi uma coisa efêmera, não pegou. Foi aos olhos do espírito liberal do tempo mais uma prova da incapacidade da monarquia germinar na América.

Havia uma certa vergonha do Brasil estar fora de moda, sendo monarquia, porque a república era a forma de governo elegante do tempo. França era república. América do Norte era República. A Inglaterra que não era republicana, era a mais liberal das monarquias na Europa. De maneira que tudo isto fazia com que o Imperador parecesse uma excrescência, uma coisa que o curso dos tempos teria que derrubar.

Por outro lado, também concorreu muito para a queda da monarquia uma ação hedionda de D. Pedro II: foi a questão religiosa com Dom Vital. Os senhores conhecem esse caso, eu não vou falar dele. Aliás, também já está muito tarde, vou ter que abreviar… é uma e cinco [da noite].

Depois, houve outra circunstância que foi a seguinte: o pensamento da Faculdade de Direito de São Paulo era o pensamento réctor do pensamento político do Brasil. E os senhores conhecem todo o caso de Júlio Frank, a “bucha” etc., que deu um caráter republicano à formação psicológica de todos os homens políticos brasileiros.

O imperador, ele próprio, extremamente liberal, fez todas as facilidades possíveis para a República entrar. O partido republicano gozava de toda a liberdade. Havia um padre que era um líder republicano famoso: um tal Padre Miguelinho.

E um caso ocorrido na minha família mostra bem aos senhores isso. Minha avó tinha um irmão quer fez concurso para a Faculdade de Direito. Naturalmente entrou. Então, ele devia ser nomeado pelo Imperador. Ele escreveu uma carta ao Imperador dizendo: eu previno a Vossa Majestade que eu sou republicano e que como professor da Faculdade de Direito de São Paulo, trabalharei pela proclamação da República. Portanto, se a Vossa Majestade disserem que eu sendo nomeado e fiz propaganda republicana, não julgue que sou um traidor e que eu lhe devo uma cátedra, porque eu conquistei pelo meu talento. Agora, decida como quiser.

Daí a dias, um decreto do Imperador nomeia o republicano catedrático da Faculdade de Direito. Fatos assim, os há em quantidade no reinado dele. Ele corroía, assim, o seu próprio trono.

A questão da abolição dos escravos, é uma questão de que eu tratarei de outra vez… Abolição dos escravos e outras coisas assim…

Eu trato apenas — mas já vai como fatinho — entre as festas que ele assistiu foi na cidade chamada Pirassununga. Eu contarei um fato que lá se deu…

O Imperador foi a Pirassununga e, naturalmente, a cidadezinha estava avisada com muita antecedência que ele chegaria. Então prepararam grandes festas etc. e foram receber o Imperador na estação do caminho de ferro.

Era tempo de jabuticaba, e o Imperador era louquíssimo por jabuticaba. Havia em Pirassununga uma fazenda que tinha um pomar (como os senhores não tem idéia que havia naquelas fazendas antigas; porque como a terra era barata, eles plantavam, dando frutas em quantidade até cair no chão de podres; qualquer colono ou pessoa podia vir pegar, tirar, sem pedir licença; aquilo era aberto, porque dava para todo o mundo; e ainda sobrava. Mangas, o que fosse… laranja, lima, laranja, lima, mexerica, abacate; havia tudo numa quantidade incalculável… e havia jabuticabas… O imperador era louco por jabuticabas.

Havia ali uma fazenda cujo proprietário tinha plantado um pomar só de jabuticabas. Então, para alegrar um pouco a visita, em vez da eterna festa da escolinha, com meninas recitando discursinhos feitos pelo professor — não atrai — resolveram que seria mais interessante oferecer a ele um lanche em casa de meu avô, à Imperatriz também, e depois, visita a essa fazenda… e chupar jabuticabas à vontade.

Durante esse tempo, o trem imperial ficava parado na estação de Pirassununga. Naturalmente, ninguém movia nem tinha horário, era quando o imperador acabasse de comer jabuticabas e que embarcava…

O Imperador desembarcou com banda de música etc. Foi levado para casa de meu avô.

Agora, os senhores vejam o sistema: minha mãe me dizia que ela ainda se lembrava de que minha avó tinha ficado com a Imperatriz no wagon, porque a imperatriz era manca, andava com dificuldade, e não ia descer. E parece que não se interessava tanto assim por jabuticabas. Então, ela ficou conversando com as senhoras de Pirassununga no wagon, enquanto o Imperador desceu até casa de meu avô, e tomou contato com os principais políticos da cidade.

Então, enquanto se distribuía o chá, coisa típica do Brasil, ele pegou minha mãe, que era uma menina de 4 ou 5 anos, e pô-la assim, em pé, entre os joelhos dele. E começando a conversar, ele pôs a mão [na cabeça dela] — tudo é essa familiaridade do Brasil, das coisas do Brasil, o vovô do Brasil — brincava com ela, chamando-a de “minha filha…” Para agradá-la e distraído, meio maquinalmente, ele passava a mão sobre os cabelos dela, alisava os cabelos dela.

Ela contava que minha avó tinha feito para ela, como ela tinha uma cabeleira abundante, cabelos ultra cacheados, bem arranjados, e com uma fita que ele achava linda… e ela via o Imperador derrubar todo o edifício capilar. E ficava com uma vontade enorme de pedir ao Imperador de não fazer, pois estava estragando o penteado dela.

Coisas de instinto de menina, ela olhava para o pai para ver se podia fazer… e o pai, naturalmente, percebia qual seria a reação da menina. E falando para o imperador, sorrindo, mas com o olhar posto na filha… como quem diz: não se atreva! Porque é a mão imperial e onde ele pousa a mão, não se corrige nada. Depois que ele for embora arranje sua fita e seus cachos. Agora, é como ele fez. Não foi dito, mas o olhar exprimia isto.

Creio que foi aí que se deu um outro fato que mostra bem (este fato se seu, porém, não sei se foi aí) a familiaridade das visitas do imperador. Eu acho até meio excessiva essa familiaridade. Ele sabia falar um dos idiomas índios, acho que o tupi, na perfeição, mas na perfeição, como quem fala um idioma contemporâneo. E um político do lugar, querendo colocar mal o chefe da oposição, adversário político dele, quando ia da estação para casa, disse ao imperador:

Vossa Majestade sabe quem é que aqui está em condições de falar tupi com Vossa Majestade é o Dr. Fulano de tal, ele fala tupi na perfeição. Dirija-se a ele que vai ficar muito contente.

O imperador, quando foi apresentado ao Dr. Fulano de tal, começou a falar com ele em tupi. O homem não entendeu… E podia passar pela cabeça dele tudo o que há no mundo, exceto que o imperador falasse com ele em tupi com ele…

Ele acabou dizendo: Eu não entendo o que Vossa Majestade está-me dizendo. Aí o imperador caiu em si e viu que tinham feito uma jogada política para desprestigiar o homem, e disse apenas amavelmente: Tinham-me dito que o senhor falava tupi, por isso eu lhe dirigi a palavra em tupi. Mas mudou, não disse quem é que lhe tinha dito. E a coisa passou.

Os senhores estão vendo que era uma piada e uma intimidade que não era absolutamente admissível.

Até a extrema velhice, a menina se lembrava do episódio (de Pirassununga) que contou à sua descendência várias vezes… E agora, meus caros, está terminada a reunião.

Dom Pedro II, no exílio em Paris (1887)
Dom Pedro II, no exílio em Paris (1887)